Quem somos

Publicado em 06/07/2022

"Assim o ser de desejo se reúne ao ser do saber para disso renascer numa banda feita de uma só borda, aquela que sustenta o agalma - o desejo.”
(LACAN, 2003, p. 260)

Lacan, por ocasião da crise instaurada na comunidade psicanalítica francesa, propõe dispositivos originais cuja lógica de funcionamento instituiria laços de trabalho assonantes com o saber que se extrai da descoberta do inconsciente.

Há inconsciente! Um saber não-sabido que engendra Saber disjunto da Verdade, sempre meio-dita.

Tal retomada da verdade freudiana eleva a formação do psicanalista e a transmissão da psicanálise a um estatuto de questão a ser permanentemente estabelecida – já que não-toda respondida – e convoca a comunidade psicanalítica ao compromisso de tal empreitada. Assim, o legado de Lacan não-sem Freud deixa aos psicanalistas a responsabilidade e o compromisso com a tarefa de se organizar, fazer suas apostas, trabalhar, recolher e publicar o produto originado a partir da aceitação de tal desafio. Zelar pela demarcação do lugar da psicanálise no mundo – considerando a formação do psicanalista como questão permanente segundo os fundamentos consolidados pela descoberta freudiana e refundados por Lacan em seu retorno a Freud – é o compromisso aceito pelos psicanalistas que fundaram a Psicanálise&Cultura em 2004.

A escolha do nome Psicanálise&Cultura, para a associação sem fins lucrativos que se constitui para abrigar os trabalhos, ressoa em Freud pelo lugar que ele confere à cultura/civilização¹ quanto à renúncia pulsional e a formação dos sintomas; e  em Lacan no seu célebre aforisma "O Inconsciente é estruturado como uma linguagem” (dimensão topológica da fala no campo da linguagem; não há fala sem Outro); nas consequências quanto ao desejo como desejo do Outro; na invenção do objeto a e função mais-de-gozar; na escrita dos discursos/laços sociais que fundam e definem a realidade para o ser de fala. Psicanálise&Cultura, escrita dessa forma, localiza a nodulação recortada pelo retorno de Lacan a Freud, como ponto de partida para definir os eixos de sustentação para a proposta que responde pela formação do psicanalista e transmissão da psicanálise.

Reconhecemos nesse nó o essencial do laço social instaurado pelo Discurso Analítico, formalizado por Lacan a partir da matemática de Freud, ou seja, a disjunção do Saber e da Verdade e o laço que articula a psicanálise em intensão e a psicanálise em extensão. Em outras palavras, a topologia do desejo de onde se articula o desejo do analista. 

Recolhendo e considerando as diversas contribuições deixadas por Lacan quanto ao laço entre psicanalistas e seus impasses, definimos alguns dispositivos e nos colocamos a trabalhar com a clareza de que somente a consolidação da transferência de trabalho constitui laços para empreender esse trabalho e recolher o produto para relançar o passo seguinte. Assim também se dará em relação ao lugar e às funções conferidas à Escola e seus órgãos de garantia, e ao levantamento da sombra espessa que paira sobre a passagem de psicanalisando a psicanalista.

Diretamente ligados a essas questões, estabelecemos um lugar ao qual denominamos Proposição para uma Escola, que atualmente vem funcionando a partir de dois eixos: um deles convoca os coordenadores de atividades a apresentarem as elaborações recolhidas da ocupação dessas funções; e no outro eixo, Direção da cura, os analistas praticantes se inscrevem para realizar pequenos seminários abordando questões e temas de interesse, suscitados pela prática com a psicanálise.

A ocupação de cada lugar na Psicanálise&Cultura está associada à elaboração da função que fala desse lugar em relação com a psicanálise. A partir da inclusão do sujeito no trajeto de sustentação dessa relação, espera-se, após um tempo de funcionamento, construir uma teorização sobre o modo próprio de instituir a psicanálise e sua transmissão, o que convoca cada psicanalista a um constante trabalho de sua elaboração. Espera-se que tal dinâmica de funcionamento seja capaz de orientar as respostas às questões que a psicanálise, posto que leiga, não se institucionaliza a priori.

Do percurso trilhado, incluindo apostas fracassadas ou não levadas a termo, tivemos a boa surpresa de constatar mais uma vez a importância do cartel. Aos poucos, e atentos à coletividade² que convém à psicanálise, fomos estabelecendo modificações e propondo formas para adequar o funcionamento às necessidades do momento. Essa é a lógica que dá sustentação à estrutura do dispositivo de trabalho, tal como proposto por Lacan. Atualmente o trabalho em cartel na Psicanálise&Cultura acontece em três tempos – Cartéis, Encontro entre Cartéis e Colóquios de Psicanálise de Vila Velha – e responde pelo dispositivo responsável pelo ensino, a partir da letra de Freud e Lacan e de alguns outros.

Hoje, anos depois, contamos mais uma volta e ao mesmo tempo reafirmamos o compromisso em demarcar o lugar da psicanálise no mundo, preservando sua especificidade.  Aderimos aos meios materiais de transmissão disponíveis pelo avanço da tecnologia como forma de "vir a público” e como inspiração para estabelecer e/ou recolher os efeitos mediante um trabalho, que inclui a possibilidade de encontros híbridos (a distância e em presença física) e a nossa presença nas redes sociais e neste site.


Notas:
[1] Não desconhecemos as questões que envolvem a utilização dos termos em Freud. Nos propomos a certo momento esclarecer e recolocar a questão.
[2] Essa coletividade, em psicanálise, é formada pelas relações recíprocas de um número definido de sujeitos.

Referência:
LACAN, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In: J. Lacan. Outros escritosRio de Janeiro: Jorge Zahar, pp. 249-264.